quarta-feira, 8 de maio de 2013


                                As Más Caras do Poder

 

                                                                                                                Suzete Carvalho* 

 

Dia desses, um reencontro ocasional me fez voltar no tempo e relembrar um fato que eu julgara completamente superado.  À noite, cansada e indisposta, mergulhei em sono profundo e não deu outra: sonhei com algumas pessoas que durante anos fizeram parte de meu rol de relacionamentos de trabalho.

No sonho, eu entrava por engano em um local um tanto deprimente e, surpresa, encontrava alguns ex-colegas e os abraçava saudosa.  A seguir, percebendo que uma autoridade de então, parecendo profundamente abatida, entrara no local e fora ignorada pelos demais, procurei ajudá-la massageando suas mãos e braços literalmente gelados, quando levei um grande susto: de um salto, a personagem retirou uma máscara de gesso – que eu confundira com palidez – e soltou estridente gargalhada.

Acordei sobressaltada e me pus a filosofar sobre a questão: “Será que se houvéssemos sido alertados(as) no devido tempo, teríamos reconhecido as “máscaras” (ou, se preferirem, “más caras do poder” como tive oportunidade de poetizar algures), que hoje retornam para nos assombrar?  Será que já não é (mais do que) tempo de darmos um basta à violência simbólica de que temos sido vítimas – nós, os servidores e servidoras públicas, entre outras minorias – desde sempre?”.

Pois bem, entrei para o serviço público no final dos anos 50 e, por favor, não façam as contas, mas levem em conta que à época sequer se falava em assédio moral (ou sexual); que as mulheres casadas eram consideradas semi-capazes pela Lei Civil; que o país era tido como subdesenvolvido, sem acesso à tecnologia de ponta; que a discriminação de todas as minorias era um questão banal e que, enfim, ninguém vive tantas décadas e tantas experiências incólume.

O que quero dizer é que cada causo vivenciado fica encapsulado na memória ou, se preferirem, atravessado na garganta, aguardando uma oportunidade de se oferecer à experiência do “outro” para que as dores e as alegrias nele contidas possam agregar significações à vida de quem se dignar a repensá-lo.  Assim, tomo a liberdade de transcrever aqui um “microconto macrorrealista” que publiquei há algum tempo e que recebeu, nas redes sociais, o seguinte comentário do arquivologista carioca Glauco Rocha: “O Arquivo morto como metáfora de (...) assédio covarde e intolerante de quem está no controle. Ainda hoje isso é uma realidade”.

“O chefe:Mariazinha, escreva tudo que você sabe sobre a última Jurisprudência do Tribunal.No mínimo, cinco páginas, entendeu?   O senhor tem pressa?   Pra ontem!   O colega (dias depois), portando uma importante Revista técnica: Mariazinha, você viu o excelente artigo do teu chefe?Foi você quem datilografou?    O Presidente do Tribunal: Parabéns, doutor.É de uma cabeça como a sua que estamos precisando.Vou nomeá-lo Chefe do meu Gabinete.       O Chefe (mais tarde): Não se preocupe, Mariazinha, não vou te abandonar.Você vai como minha secretária, a não ser que prefira ser lotada no Arquivo morto.”

Que o Dia do Trabalho tenha o condão de nos fazer repensar - a nós e à sociedade como um todo – sobre a urgência de uma ética abrangente de valorização e reconhecimento que inclua os trabalhadores e trabalhadoras do serviço público, cuja contribuição para a manutenção e desenvolvimento do Estado democrático é imprescindível.

 

A autora é associada da AFPESP, ex-professora universitária, ex-presidente de Associação de Classe e tem centenas de matérias publicadas. Pós-graduada em Filosofia do Direito e Direito do Trabalho (USP). http://novaeleusis.blogspot.com 
 
Publ. in "Folha do Servidor Público", maio/2013, pág. 17.
 

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