domingo, 8 de fevereiro de 2009

Bom dia

PARTE I

- “Bom dia, amor!” - “Hum”.
- “Quê que há? Tá com soninho ainda?” - “Tô. Cai fora”.
- “Porque a agressão, meu bem?” - “Ih! Vai começar? Você é igualzinha às outras”.
- “Outras? Você disse que eu era a única”. - “Claro! Agora se manda, tá?”
Magoada e assustada, vestiu-se às pressas e saiu como um touro. “Bem que merecia”, pensou chorando. Afinal, cair na conversa de um conquistador bonitão, narcisista, ela que se julgava tão experiente, era bem feito! Passou pelo porteiro, que lhe lançou um olhar de conhecedor. Que raiva!
Bateu a porta do carro e olhou-se no espelho retrovisor. Esquecera-se de pentear o cabelo. Os olhos vermelhos, com resquícios de pintura, davam-lhe um aspecto tresloucado.
Partiu a toda, as lágrimas rolando. À saída da cidade, um guarda de trânsito fez sinal para que parasse. - “Seus documentos, por favor”.
Olhou-a de lado, enquanto examinava a documentação.
- “Tem certeza de que está se sentindo bem?” - “Sim. Quer dizer, fui ao médico e estou voltando para casa”.
- “Mora fora da cidade? Quer que a escolte?” - “Não obrigada, já estou bem”.
- “Então vá devagar, para evitar um acidente. Boa sorte”. - “O senhor sabe as horas?” - “13h45”.
Deu partida com cuidado. Não se alimentara e estava ligeiramente zonza, mas não queria dar a perceber. Pararia no primeiro bar para um café bem forte.
Conhecia Marcos há já algum tempo. Na verdade não sabia muito a seu respeito. Apenas que ele adorava pregar peças de mau gosto na turma. Ah!, e que a deixara esperando diversas vezes, para reaparecer dias depois, com cara de ofendido, dizendo que ela não o amava, que estava frustrado por suas constantes negativas, que isso de virgindade “já era”. Outras vezes alegava ter estado em provas, estudando adoidado para "o concurso". Nunca explicava qual, dizendo que só saberiam quando fosse nomeado.
A irmã a alertara: - “Esse cara não presta, cai fora”. Odiava essa expressão e jamais a repetiria a alguém. Odiava ainda mais ter que dar razão à irmã. Pensava que ela estivesse com inveja, quando dizia “Não sei o que você vê nele”. Agora percebia que o que mais a atraíra, além de sua presença física, fora o fato de ele proclamar-se feminista ferrenho. “As mulheres precisam se libertar, ter vida própria”, dizia com um sorriso cativante, a incentivá-la. E agora ... ela nem queria acreditar em sua própria ingenuidade.
Pouco depois, já revigorada com o café, lavou o rosto e penteou-se no toalete da lanchonete, olhando de soslaio para o espelho manchado, que deformava ainda mais sua expressão desolada. Resolveu tentar o caminho que Marcos lhe ensinara na véspera, incitando-a a passar a noite com ele. - "Assim você corta caminho e ganha tempo pra enrolar o seu avô", dissera com voz melosa, beijando-a.
Nunca passara a noite fora de casa sem avisar, então, explicaria a ele a situação e pediria que confirmasse que ela passara a noite na fazenda. Sempre tivera uma ligação muito forte com o avô, a ponto de causar ciúmes na ala mais jovem da família. Quando a irmã reclamava, ela dizia: - “É pra compensar, já que você é a queridinha do papai”.
A estrada era de terra, mas o tempo estava bom e ela não se preocupou, apesar da poeira que o carro levantava. Envolvida em tantos pensamentos, lembranças, sentimentos, passou um bom tempo antes que começasse a estranhar a demora para chegar à encruzilhada, na qual, Marcos lhe alertara, deveria entrar à esquerda. Dali, sempre em frente, chegaria ao rio, onde haveria uma ponte, e poderia alcançar a fazenda pelo sul, percorrendo inúmeros quilômetros a menos.
Enfim, a tabuleta ilegível. Manteve-se à esquerda, a estrada e o tempo passando e piorando, em sinistra conspiração. Esquecera-se de abastecer o carro e o marcador de gasolina já apontava bem menos de um quarto de tanque. Pensou em pedir ajuda pelo telefone, mas se deu conta de que o deixara na mesa de cabeceira do hotel. Consolou-se com a frase preferida de sua mãe: “Vai dar tudo certo”.
Bem à frente, avistou um caboclo à beira da estrada. Alcançou-o:
- “Boa tarde”. - “Tarde”.
- “Por favor, eu estou longe do rio?” - “Depende, dona”.
- “Será que eu chego lá antes da noite?” - “Sei não, dona. Vai escurecê mais cedo por causa da chuva que vem aí”.
- “Obrigada”. E arrancou, deixando uma nuvem de poeira na cara do coitado, que soltou uma praga.
- “Desgraçado o Marcos”, pensou novamente, “se eu tivesse feito o caminho de sempre, já teria chegado”.
A água desabou, e nem o farol alto, o limpador de pára-brisa e o desembaçador ajudaram. Foi obrigada a parar por um tempo que lhe pareceu infinito. Aquela maldita mini-saia estava deixando suas pernas geladas. Nunca levava mala, porque na fazenda tinha guarda-roupa completo e apropriado.
Afinal, a chuva amainou e ela recomeçou, derrapando aqui e ali e rezando para não atolar. À beira da estrada, o capim alto visto ao lusco-fusco do entardecer, parecia esconder caras monstruosas, prontas a atacar. - “Oh, imaginação!”. Mas estava realmente com medo, não sabia bem de quê.
De repente, avistou um tênue ponto de luz à distância. - “Graças a Deus”.
Não era tão perto quanto parecera. Quando chegou, acabara de escurecer.
O casebre, mal iluminado, era um misto de bar e moradia de um só cômodo. Um homem de camiseta regata e pele avermelhada abriu a enorme boca desdentada, num sorriso assustador, assim que a viu. Trazia nas mãos um copo, que tinha a certeza não conter água. Atrás de uma espécie de balcão, um caboclo gordo e simpático, foi mais discreto.
- “Perdeu o caminho, dona?” - “Espero que não. Estou procurando a ponte para atravessar o rio”.
- “Tem não. Só um barco de pescadores, mas eles desceram o rio pra mais de três dias e inda num vortaru”.
- “Meu Deus! Eu estou procurando a Fazenda Promissão, que fica do outro lado, já ouviu falar?”
- “Ouvi não. Cê cunhece, Tonho?”
O outro não tirava os olhos de suas pernas.
- “Nem de sonho. Pra mim, a dona pegou é estrada errada”.
- “Existe alguma fazenda por aqui, uma hospedaria, um telefone, qualquer coisa?”
- “Nada, não, dona. Só a aldeia dos pescadores, mas acho que num vão aceitá a senhora lá, não. As muié são muito braba. Só se quisé se arranjá por aqui”. E olhou para as redes imundas dependuradas ao fundo.
Sentiu as pernas tremerem, mas tentou disfarçar. Tinha que raciocinar rápido... Estava praticamente sem gasolina.
- “Quem sabe a Maria Loca?”, lembrou o gordo, “ela é doida por um dinheirinho e tem a casa maió que eu já vi”.
- “Eu, hein!”, resmungou Tonho, “tão falano que a casa é mal-assombrada. Tem até aquela história...”.
Cláudia não o deixou terminar a frase. - “Pra mim está ótimo”, disse apressada. “Onde mora essa dona Maria”?
- “Eu levo a dona inté lá. O Tonho óia aqui pra mim. É um pulinho e eu posso vortá na carroça das entrega. Ela inté vai me agradecê.”
- “Cê num qué que eu vô, Zé?” - “Não, Tonho. Cê fica. Eu vorto logo”.
(continua)*


Para não sobrecarregar a leitura, a PARTE II será postada na próxima semana.

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