quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Equilibristas

Equilibristas que somos todos nesta gigantesca esfera que rodopia vertiginosamente no espaço, na qual fomos lançados por algum poder imperscrutável, nossa única certeza é a morte. E, ‘santa ignorância’ ou descabida pretensão, nos acreditamos todo-poderosos sem sequer conhecermos a nós mesmos, sem saber de onde viemos ou para onde vamos, se é que vamos para algum lugar, se é que existe algum lugar, se é que realmente existimos. Aliás, talvez essa inconsistência seja um dos sentidos de Maya (a Grande Ilusão) dos ensinamentos hinduístas.
E, como mecanismo de fuga, tentamos nos assegurar de nosso ‘controle sobre o inexorável’, exercitando persistentemente nossa única inalienável certeza, a finitude. Nós nos matamos e matamos nossos companheiros da grande viagem cósmica que o existir nos proporciona, num afã sistemático de aniquilação de todos os seres e da própria Terra que (n)os abriga.
Com uma pertinácia que não aplicamos a qualquer outro mister, nos dedicamos diuturnamente a criticar, julgar, discriminar, invejar, odiar, humilhar, desprezar, subestimar, culpar e até a agredir fisicamente nossos parentes, vizinhos, amigos, colegas, conhecidos, empregados, patrões e governantes, utilizando todos os meios capazes de atingi-los.
Da maledicência à indiferença e desprezo, da grosseria prepotente ao sarcasmo, da violência simbólica à agressão explícita, nós os assassinamos lentamente, com requintada crueldade. Mas, convenhamos, somos equânimes. Com o mesmo empenho, nos devotamos à nossa própria destruição, lentamente.
Descuidamos de nosso corpo e de nossa alma, ingerindo gulosamente toda espécie de alimento, assim como engolimos, sem digerir, as ofensas e dissabores do dia-a-dia; nos deixamos agredir por pessoas, coisas e situações sem sentido, submetendo-nos aos flagelos físicos, mentais e psíquicos que nos auto-impomos ou que nos são impostos pela cultura, pela sociedade, pelo poder; envenenamos o ar que respiramos e nos deixamos prazerosamente intoxicar; renunciamos a nossos direitos e descumprimos nossos deveres.
Entregamo-nos docilmente aos caprichos da Fortuna e nos deixamos enredar nas malhas das paixões - entre elas o poder, a inveja e o ciúme -, em nome das quais cometemos desatinos, e nos culpamos, nos ressentimos, adoecemos e morremos, sem saber porque nascemos, vivemos e... morremos. Essa tem sido a nossa saga cotidiana, a saga da (falta de) consciência. Ausência de discernimento, essa a avidya de que nos falam os mestres hindus.
Nesse sentido, temos sido, todos – homens ou mulheres, jovens ou velhos, ricos ou pobres, eruditos ou analfabetos, brancos, pretos ou amarelos -, um tanto sadomasoquistas. Raríssimos artistas, sábios e santos têm sido exceções, quando não se recolhem à sua própria aura iluminada.
De alguns, recebemos legados valiosos, que em geral interpretamos literalmente, ignoramos, subestimamos ou mesmo repetimos por mero diletantismo, ‘como papagaios’. Quando não, procuramos algum ponto fraco para desqualificá-los como um todo, em vez de assimilar a sabedoria contida em muitos de seus ensinamentos, arrogância que nos leva a perder a oportunidade de dar um sentido maior à vida.
Sentido que às vezes chegamos a pressentir, especialmente nos momentos mais críticos, nos estados de emergência em que permitimos que a Providência nos visite, e então nos é dada (ainda que por nós mesmos) a oportunidade de descobrir que somos todos interdependentes e que o sofrimento nos afeta a todos, inexoravelmente. Se nesses momentos de lucidez, conseguirmos romper os velhos padrões, encontraremos os pontos de alavancagem para uma existência mais digna. Esse o salto quântico de uma ética fugaz e fragmentária para uma totalidade ética mais efetiva e eficiente. Esse, o outro lado do grande paradoxo humano: a nossa infinita grandeza.

Trecho do 3º sub-título (Ética e Valores Humanos), do cap.III (Inveja e Ressentimento) de meu Ensaio Transdisciplinar sobre Inveja, Preconceito e fenômenos afins, intitulado O Olhar da Caprichosa (em fase de atualização e revisão).

2 comentários:

Eugênia Pickina disse...

Querida Suzete, voltei, li e me nutri. Nesta sexta-feira, quando me dou o direito a derivar e estar comigo mesma, nas brumas e no espaço do imaginal. Gostei tanto desse texto [trecho]... Fiquei a pensar sobre a assertiva: "quando não se recolhem à sua própria aura iluminada".
Não sei, mas li e recordei Francisco de Assis... sua fase-Maya e sua abertura à Clara Luz e ao que é essencial... Esquecemos tanto disso, preso que estamos às dimensões da mente, do julgar/discriminar e afastados dos espaços do Mistério, do Amor, dos encontros... Ressentimentos que nos impedem de Ser. Vícios e condicionalidades que bloqueiam nossa espontânea arte da compaixão e do amor. Com efeito, aprendi, me recolhi, perguntei ao ler o que você generosamente ofertou. Obrigada. Bom final de semana! Um beijo. Eugênia.

Suzete Carvalho disse...

Olá, Eugênia
Interessante você lembrar de Francisco de Assis, porque ele faz parte de meu rol de seres inspiradores. Dia 4 de outubro é dedicado a ele, lembra-se? Aliás, os primeiros dias de outubro são sempre inspiradores: Dia 1º é o dia de Santa Terezinha do Menino Jesus (a de Lisieux), cuja imagem em êxtase diante do Cristo eu vi quando criança e jamais esqueci; dia 2 é o dia de Gandhi, cujos cento e cinquenta anos de nascimento comemoramos este ano. Durante muitos anos fiz palestras nessa data, lembrando desses três exemplos da grandiosidade a que o ser humano pode chegar. Juntos,
eles formam a mais "espontânea arte de compaixão e amor", como diz você.
Namastê.
Suzete