segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Maioria (i)moral

O filósofo esloveno Slavoj Zizek opõe o fundamentalismo autêntico ao que chama de “fundamentalistas pífios da Maioria Moral”, tomando como instrumento de distinção a inveja como pecado capital: “...o fundamentalista da Maioria Moral é sempre assaltado pela atitude ambígua de horror e inveja em relação aos indizíveis prazeres a que se entregam os pecadores” ... “fundamentalistas autênticos não invejam os diferentes prazeres de seus vizinhos”.[1]


Suas palavras evidenciam a hipocrisia dos puritanos, o jogo invejoso com que temos sido impregnados pela cultura, que faz com que projetemos agressivamente sobre todos aqueles que ousam ser diferentes (pecadores), nosso incomensurável e reprimido desejo de assumir as nossas próprias (pecaminosas) diferenças. A coragem daquele que ‘se assume como realmente é’, é um pecado imperdoável ao olhar do invejoso, vale dizer, da maioria (moral).


Assim é que, premida pela moral, a transgressão aos preceitos incutidos pela tradição patriarcal se nos apresenta como inconcebível e, dessa forma, perdemos a oportunidade de nos individualizar. Sem coragem para enfrentar nosso ‘desejo de pecar’, somos lançados à vala comum da Maioria Moral que se deixa corroer pela inveja.


Vale a pena lembrar que pecado, do latim peccatu, tem o sentido original de transgressão de um preceito religioso, violação da vontade de Deus. Etimologicamente, como ensina Geraldino Alves Ferreira Netto, pecar significa “dar um passo em falso”, de onde se teria originado a expressão “cair em pecado”.


Com o tempo, a Igreja ampliou o espectro pecaminoso, agregando as transgressões contra os homens e, principalmente, contra o próprio corpo, sacralizando o sexo – elegido como o grande tabu – sob o manto da intocabilidade, o que revelaria uma certa fixação pelos problemas carnais.


As pessoas essencialmente invejosas não conseguem se dar o direito ao prazer, privando-se de experiências felizes, e priorizando a crítica e a hostilidade em relação aos outros e a autocomiseração em relação a si próprias. Mas o problema se agrava quando a hipocrisia se instala e os prazeres são exercidos subrepticiamente, pois o ‘gozo secreto’ escapa ao controle externo rompendo às vezes as fronteiras psicológicas, morais, sociais e até as legais.

*Trecho do sub-título 2 (Hipocrisia Social) do cap. VI (Fundamentalistas da maioria Moral), da Parte I (As Faces da Inveja - e questões correlatas) do livro O Olhar da Caprichosa (Em fase de revisão e atualização).

[1] “Budismo Ocidental? Não Obrigado”, Folha de S.Paulo, Caderno Mais, 03/12/2000.

2 comentários:

Eugênia Pickina disse...

Querida Suzete, adorei o texto! Ele toca em feridas modernas, desaloja a ideia de moral e pecado. Talvez os antigos estivesses certos - não seria apenas o pecado um "errar o alvo"? Afinal, aprendemos por meio de erros e acertos. Experimentar, gozar, sofrer, tudo isso é preciso para o viver tão "impreciso", na lembrança do poeta português. Por favor, continue a nos presentear com textos que instigam o pensar-e-sentir. Saudade do futuro... Eis o meu profundo sentimento. Obrigada também pelo comentário do meu Blog - a resposta está lá... Voltarei sempre aqui. Bjs. Da amiga. Eugênia.

Suzete Carvalho disse...

Olá, Eugênia
Acho um pecado (no sentido de pena, dó)que continuemos todos a exerimentar sentimentos tão velhos quanto o ser humano, como a inveja, o ressentimento, a ingratidão, a indiferença. Como questiona um amigo dramaturgo: "Porque somos assim?"
Para acertar (mais vezes) o alvo, teríamos que fazer como o Arqueiro Zen: apenas nos entregarmos totalmente, sem sequer mirar ou pensar no alvo e permitir, assim, que a seta encontre seu caminho.
Obrigada e volte, volte sempre. Talvez possamos nos inspirar mutuamente para aprimorar "a parte que nos cabe neste latifúndio".
Abraço carinhoso.