sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Ouviram do Ipiranga...

Procurando um mote para a crônica, resolvo dar uma perambulada pela vizinhança em companhia de Dª Nena, amiga e conselheira de sempre. Com a sabedoria de quem viveu as grandes transformações do século vinte, a sábia senhora me alerta a olhar o bairro com “olhos de ver” e não somente de criticar: - “Nossa tradição histórica é tão importante, que está representada no próprio Hino Nacional. Apesar de seus problemas, há também beleza e grandeza em tudo que nos cerca, portanto, não se atenha apenas às críticas”.

- “Por isso mesmo temos que ter vergonha na cara e procurar, no mínimo, mantê-lo limpo e à altura de suas tradições. Afinal, essa é uma das lições de cidadania que já devíamos ter incorporado”, retruquei. – “Está bem. Então vamos ao trabalho, mas seja mais flexível, observe as pessoas com compaixão, sinta os aromas, os sons....”.

A sirene de uma ambulância que passava em alta velocidade não me permitiu escutar o final da frase. Resolvi me fixar nos aromas, quando um ônibus que se aproximava reengatou a marcha, exalando um bocado de gás carbônico. “Há algo de podre no reino da Dinamarca”, pensei, sorrindo desanimada para mim mesma. Uma senhora que passava levantou meu astral ao retribuir simpática e alegremente o sorriso.

Reanimada, voltei meus olhos para uma bela árvore plantada nas proximidades. Sobre um pequeno canteiro que a rodeava, notei um pacote. Que conteria? Não precisei chegar muito perto...o odor revelou seu conteúdo. Alguém levara seu animal a passear e recolhera devidamente suas fezes em um saquinho, mas, que pena!, esquecera-se de fechá-lo e colocá-lo na lixeira. Apreendera a lição de cidadania pela metade. Com essa Dona Nena não contava. Nem eu.

Distraída, quase tropecei em uma mulher envolta em trapos, sentada no chão com a cabeça apoiada no muro de uma bela mansão tombada. Envergonhada pelo desequilíbrio social e, porque não dizer, pelos palavrões que me foram dirigidos, mal tive tempo de pensar na lição de Dª Nena sobre compaixão, pois logo à frente a potente campainha do palacete, tocada com insistência por um elegante senhor, atingiu meus tímpanos e meu cérebro.

Dª Nena me consolou: - “Irritou-se por que? Não era um mote que você queria? Pois já o tem...”.


*Publ.na "Coluna da Suzete" do Jornal Gazeta do Ipiranga, ed.de 12/11/2010, pág. C-4

4 comentários:

Eugênia Pickina disse...

Suzete, adoro a companhia da "D. Nena"... Ela sempre insinua e aponta aspectos que um distraído, como eu, não notaria no mundo que nos cerca. Obrigada pelas lições e, principalmente, sobre a importância da compaixão... Cidadania sem solidariedade é como esquecer que a clemência é irmã do poder... Beijos. Bom feriado.

Suzete Carvalho disse...

Olá, sempre bem-vinda Eugênia.
Agradeço em nome de Dª Nena...
A propósito de "poder", ontem li na Folha de S.Paulo uma frase que a recém-libertada ativista política de Mianmar,Suu Kyi, disse há 19 anos, um ano antes de conquistar o Nobel da Paz:
"Não é o poder que corrompe, mas o medo. O medo de perder o poder". Lembrei de Krishnamurti que dizia que onde houver medo haverá sempre ansiedade, ódio, ciúme, posse e dominação. Daí porque esquecemos de que "a clemência é irmã do poder", como diz você. O medo da perda paralisa nossos sentimentos mais nobres, entre eles a compaixão, inclusive por nós mesm@s.
Cuidemo-nos, pois...
Volte sempre, pois você tem o dom de nos fazer aprofundar as reflexões.
Bjos. Namastê.

Anônimo disse...

Muito legal o texto querida Suzete. Tive o prazer de ler está coluna do Jornal. Assim, fico feliz que esteja se dando bem com o blog. Abração..

Suzete Carvalho disse...

Olá, Guilherme
Fico muito feliz quando você passa por aqui. De fato, mantenho uma coluna mensal (Coluna da Suzete)como cronista do Jornal Gazeta do Ipiranga. Depois que a edição é publicada, posto a crônica também aqui no blog para compartilhar com @s internautas.
Estou me "dando bem com o blog", sim - aliás, gosto de dizer que ele é a menina dos meus olhos - e me sinto mais segura sabendo que posso contar com amigos como você.
Receba um grande abraço e volte sempre.