sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

A arte de pensar

Todos acreditamos sermos livres para pensar, mas será que sabemos ou podemos usar essa liberdade?

Para encontrar a resposta, devemos lembrar que são as nossas emoções, sentimentos e condicionamentos que geram e alimentam os nossos pensamentos. Devemos ainda ter em mente que mantemos uma relação de interdependência com o meio cultural que nos cerca, cuja influência determina constantes modificações em nossa estrutura.

Além disso, nossa inserção numa determinada tradição cultural faz com que sejamos herdeiros de alguns fortes elementos nela contidos, sempre realimentados por aqueles que estão interessados na manutenção de algum status, como o poder político, econômico ou religioso.

Alguns desses elementos, mantidos na cultura ocidental desde os gregos são, por exemplo, o patriarcalismo, o individualismo, a abordagem compartimentada das questões, etc. Esse modo de ver o mundo baseado na lógica aristotélica é muito reducionista, pois tende a excluir tudo e todos que não se enquadrem no padrão mental puramente racional, seqüencial e dualista.

A noção que ele nos dá dos fenômenos, é a de que eles se enfileiram um atrás do outro, produtos que seriam de uma causalidade única e imediata, sem levar em consideração as circunstâncias de sua produção e os incontáveis elementos que se combinam.

Esse modo de pensar nos apresenta um mundo de verdades inquestionáveis, onde o argumento da autoridade deve sempre prevalecer. Assim, ou você acredita e obedece, ou está excluído. É o mundo do ‘sim ou não’, ‘certo ou errado’, ‘rico ou pobre’, ‘forte ou fraco’, onde a razão é soberana e as saídas criativas - que podem levar em conta a infinita gama de possibilidades entre esses extremos de dualidade -, são consideradas "irracionais" e, portanto, abortadas.

Nesse sistema linear de pensamento, a educação é apresentada em blocos separados de conhecimento, que parecem não manter nenhuma relação entre si. As disciplinas não se comunicam, orgulhando-se de uma pretensa autonomia que acaba por isolá-las da realidade, que tem na diversidade de saberes e visões a sua grande riqueza.

O mundo não é "isto ou aquilo", mas "isto e aquilo". Há um inter-relacionamento dinâmico-circular entre todos os seres e coisas, formando uma rede de interconexões que não pode ser fragmentada, porque perde seus pontos de referência. É o que está acontecendo com o mundo globalizado que, fragmentando o econômico e o social, perdeu seus valores éticos, gerando a crise que estamos atravessando.

Esse processo é o mesmo em todos os sistemas, inclusive o humano, em que as partes (os sub-sistemas) se relacionam entre si para o bom andamento do todo, que depende da harmonia entre elas, caso contrário, entrará em crise.

Mas o fato é que toda crise é necessária e muito bendita, ao contrário do que imaginamos, pois é uma oportunidade de transformação que nos permite usar novos referenciais. Se estivermos atentos, podemos perceber seus sintomas antes que se agrave - seja uma crise física ou psicológica, individual ou coletiva -, e reequilibrar o organismo ou a situação paulatinamente, até que se encontre a justa medida.

A vida nada mais do que uma imensa teia de relacionamentos entre todas as coisas, os seres e saberes, ensinamento que remonta a antiquíssimas visões de mundo, repetitivamente divulgadas por sábios e santos de muitos lugares e épocas. Essas concepções milenares vêm sendo agora resgatadas e atualizadas à luz das mais recentes descobertas científicas, por estudiosos de vários ramos do conhecimento, que se interconectam transdisciplinarmente.

A essa múltipla conexão de vários elementos entre si e com o todo, eu chamaria de transconexão, ou seja, o estabelecimento de ligações com o maior número possível de pessoas, disciplinas ou quaisquer outros elementos necessários ao conhecimento, fazendo-os dialogarem entre si.

Para isso, faz-se necessário que as pessoas envolvidas usem sua visão sistêmica, capacidade intuitiva, disponibilidade para se reciclar, auto-estima e segurança, deixando de lado seus condicionamentos e pressupostos. Há que usar nossas potencialidades, para que possamos abrir-nos para o novo.

Humildade, tolerância, compaixão, solidariedade, e outros alimentos do espírito, um pouco em desuso devido à competitividade desenfreada e predatória que hoje campeia, poderiam também ser resgatadas com toda a força de seus significados, como um processo de cura pessoal e social, de superação da crise e de liberdade mental.

O importante é perceber aqui que, embora tenhamos sido fortemente influenciados por uma tradição cultural excludente e fragmentadora, nossos pensamentos não têm que, necessariamente, se submeter ao mero raciocínio lógico-linear, que nos foi apresentado como única possibilidade mental "normal".

A propósito, a busca ansiosa (ou neurótica) pela normalidade, que se traduz por um medo fóbico de transgressão às verdades autorizadas, tem criado gerações de "normóticos" do saber e do poder, que impedem toda criatividade inovadora.

Ao defrontar-se com os paradoxos naturais de que a vida e o homem são pródigos, as neuroses transformam-se na esquizofrenia coletiva que aí está a deformar ainda mais a realidade. Estou convicta de que esse quadro pode ser revertido e também de que as armadilhas que o pensamento padronizado e repetitivo coloca em nosso caminho, podem ser facilmente detectadas e desarmadas.

O mundo não é um "dado", mas um "construto", ou seja, algo que tem que ser construído cotidianamente, com os elementos de que dispusermos. Nessa engenharia, o pensamento é o grande arquiteto e com ele podemos embarcar em sempre renovada e maravilhosa aventura, se ao raciocínio lógico agregarmos nossa imaginação criadora, nossos sonhos e insights, nossa inteligência emocional e experiências de vida, a par de uma visão transdisciplinar dos vários ramos da ciência.

É necessária coragem (agir com o coração) para evitar padrões de comportamento discriminatórios, moralistas, conformistas; não ter medo de inovar ou ser diferente; jogar fora as catalogações, o script repetitivo e estressante e ousar encarar nossas limitações e potencialidades, como formas de pensar criativamente.

Saber rir espontaneamente, inclusive de nós mesmos, sem precisar lançar mão de piadas preconceituosas ou vulgares, utilizando outras formas de irreverência sutil e inteligente contra as verdades absolutas e seus "donos" prepotentes, são maneiras saudáveis de propugnar pela liberdade de pensamento e de expressão.

* Edição de Palestra realizada em 31/10/2000 para estudantes de Nutrição.

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