segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Violência simbólica como fator de perda de auto-estima e de direitos dos servidores públicos*



Há muitos anos venho participando de Congressos e Seminários sobre servidores públicos e confesso que me sinto bastante frustrada com os resultados - se é que existem – dessa luta dolorosa por aceitação e dignidade que a classe tanto tem feito por merecer. Estava meditando sobre as possíveis causas dessa impotência, quando me caiu em mãos um artigo em que se relatava interessante experiência americana sobre a atenção.

Trata-se mais ou menos do seguinte: Num estádio fechado, foram reunidas duas equipes de jogadores. Uma, usava uniformes totalmente brancos e portava uma bola branca; a outra usava roupa totalmente preta, e portava uma bola preta. Ambas foram reunidas em um grande círculo, em que as cores se revezavam: um branco, um preto, um banco, um preto, e assim por diante.

Foi explicado aos participantes que o jogo consistiria em fazer simultaneamente passes -sempre para a própria equipe. A platéia também foi dividida em dois grupos: a um foi explicado que deveriam contar o número de passes da equipe branca; ao outro foi sugerido que contassem o número de jogadas da equipe preta.

Pois bem, a certa altura do jogo, sem que ninguém anunciasse, adentrou no estádio um grande gorila - claro que era um homem disfarçado de gorila - que foi até o centro do círculo e fez muitas micagens, inclusive batendo ameaçadoramente as mãos no próprio peito. A seguir, retirou-se, sem que o jogo sofresse interrupção.

Ao final do jogo, foi perguntado à platéia e aos próprios jogadores, o que haviam achado da participação do gorila e ... pasmem: a maioria respondeu: "Que gorila?". Acreditem, a maior parte dos expectadores não havia sequer visto o enorme animal e os que notaram sua presença desviaram os olhos para não perder a contagem!

Meditando sobre essa experiência - que não é apenas uma parábola, é um fato real - tive um insight: Nós não vemos o ‘gorila’! Somos tão submissos àquilo que nos mandam fazer, que simplesmente não enxergamos, não temos consciência do que está acontecendo ao nosso redor, da violência que está em jogo, no jogo do poder.

Isso é o que acontece com a violência simbólica, uma forma sutil, mas, nefasta, de manipulação, que há muito tempo vem sendo utilizada pelos detentores do poder e que consiste na afirmação de algo, como realidade insofismável, que embora não contendo bases sólidas, serve para desviar a atenção popular do arbítrio cometido.

Dessa forma, as questões verdadeiras, estas muito mais sérias, não se tornam motivo de conflito e acabam sendo legitimadas pelo consenso das massas e até pelas próprias vítimas que não enxergam a arbitrariedade embutida e até participam do processo, quer por comodismo, quer por desconhecer sua própria força.

Assim, a ignorância dos problemas estruturais, facilita a eleição de culpados, aliviando a consciência da ralé política e social. Num esforço mal intencionado de personificar o mal, projetam-se todas as mazelas e desmandos sobre alguns "bodes expiatórios", dentre os quais os servidores públicos.

Essa imagem distorcida da realidade que se chama ideologia ou consciência falsa incita a ralé, entendida como aqueles que se deixam levar por ideologias inconseqüentes, a participar de um populismo histérico, insuflado por aqueles que se beneficiam da situação, os ‘fazedores de ralé’ ou, melhor dizendo, os exploradores da ignorância e da submissão popular.

O senso comum é formado por idéias estereotipadas que nos são sistematicamente transmitidas e não passam pelo crivo da consciência, de tal forma que estigmatizamos outros grupos, sem perceber o quanto somos também estigmatizados.

Assim, por exemplo, todos os servidores públicos são vagabundos, corruptos, marajás; todos os aposentados são inúteis; todas as crianças de rua são viciadas e perigosas; todos os pobres são incompetentes. Vocês conhecem outros exemplos de preconceito, principalmente os alimentados por piadas e arremedos grosseiros cotidianamente repetidos contra grupos ‘ditos’ minoritários, como as mulheres, os negros, os judeus, os homossexuais, os portadores de deficiências, etc.
A fórmula utilizada no caso dos servidores públicos é a de colocá-los em oposição aos trabalhadores que "pagam impostos para sustentar a ineficiente máquina administrativa", como se os servidores não fossem também contribuintes e nem mesmo trabalhadores, sendo ‘sustentados’ pelos ‘cidadãos de bem’ (!?).
Põe-se ênfase na ineficiência, ocultando-se as principais razões pelas quais as Instituições Públicas não conseguem dar conta dos problemas que lhe são afetos. São desconsiderados fatores determinantes, como falta de material e de condições mínimas de trabalho e perda de direitos como o de reajuste dos já baixíssimos salários da esmagadora maioria, alimentando a baixa-estima generalizada e degradando a força de trabalho.
O fato é que fazemos parte de uma complexa rede social, que sofre os efeitos de uma cultura competitiva, preconceituosa e dualista que separa os seres humanos em bons ou maus, certos ou errados, vencedores ou fracassados, sem perceber que não somos "isto ou aquilo", mas "isto e aquilo". Tudo isso faz com que perpetuemos a discriminação, seja contra ou a nosso favor. E quanto mais discriminarmos, mais seremos discriminados.

Talvez devêssemos começar a refletir sobre nossa verdadeira participação na perpetuação de uma cultura que faz da arbitrariedade e da discriminação o jogo do contente, no qual nada mais somos do que cidadãos capengas, meras peças que se deixam ingenuamente manipular.

* Edição de palestra realizada no III Seminário Nacional de Servidores Públicos – AFPESP – Guarujá – 25/08/2001.

2 comentários:

Unknown disse...

Parabéns Suzete!!! Sua visão é muito lúcida da categoria e quiça de todos os brasileiros. Não enxergamos os gorilas. Somos condicionados. O anuncio do Governador José Serra de cria na Administração Pública um sistema de gestão por resultados é mais um gorila que entra no jogo.

Suzete Carvalho disse...

Obrigada, Maristela.

Infelizmente, vemos apenas o que nos interessa, vale dizer que geralmente olhamos para nosso próprio umbigo, por isso não vemos o gorila. Numa sociedade competitiva como a nossa, não somos educados para vê-lo, mas não me parece uma "missão impossível", pois depende apenas de colocarmos um pouquinho mais de atenção ao nosso entorno.