segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Um corpo na praia


O azul-verde do mar, em toda sua pujança, a atraía inexoravelmente. Foi entrando lentamente, olhos fixos na imensidão. O sol a pino lançava chispas ao céu, que se refletiam sobre as águas transparentes, obnubilando-lhe visão e mente, já um tanto deformadas pelo sofrimento.
Risadas soltas, brincadeiras e correrias absorviam a atenção dos freqüentadores da badalada Praia da Paixão, onde a cerveja estupidamente gelada disputava primazia com a frieza humana, na alienação instituída.
A primeira onda alcançou-a aérea, a cismar, e não teve dificuldade em fazê-la perder o pé. A segunda, derrubou-a com violência. Tentou firmar-se, mas o chão parecia escapulir dançando.
Fabinho foi o único a pressentir a tragédia. Desconsolado com a indiferença dos adultos, criava castelos imaginários, ocupando-se em baldear incontáveis carregamentos de areia em seu inseparável brinquedo de plástico, presente do pai: “Que é pra você lembrar do papai, quando estiver na praia com a louca da sua mãe”.
Já havia vislumbrado a mulher, diferente no vestido esvoaçante e colorido como um arco-íris, admirando-se com a inusitada incursão dentro d’água, em trajes de rainha. – “Ih, será que essa é a Iemanjá?”.
Tentou afastar o pensamento, pois a mãe o proibira de acreditar nas histórias da Glorinha. – “Aquela analfabeta, vou ter uma conversinha com ela”, dissera Marina, num daqueles momentos de mau-humor cada vez mais freqüentes, ao saber que a babá o deliciava com histórias de terreiro.
Mas aquela visão era muito real. Fabinho assustou-se: - “Meu Deus, acho que a Iemanjá está se afogando!” E correu: “Manhêêê...”.
Rodolfo distraía a platéia improvisada, com uma de suas eternas piadas preconceituosas, tentando envolver Marina com um indisfarçável olhar lascivo que não parecia desagradá-la de todo, em sua perceptível carência afetiva. - “Espera um pouco, menino. Não vê que os adultos estão conversando?”
Fabinho não parava de bater os pés, impaciente. – “Acho que ele precisa fazer xixi”, obtemperou Solange, complementando com um quase inaudível: “E eu também. ‘Êta’ cara engraçado, esse Rodolfo”.
O menino explodiu em choro: - “Manhê, a Iemanjá...”. A mãe perdeu a paciência: - “Você não aprende mesmo, né? Vá procurar seu avô e só volte aqui com a cara lavada e a bexiga vazia”. E voltando-se para Rodolfo: - “Desculpa, querido, onde estávamos mesmo?”
- “Não se preocupe, criança atrapalha mesmo. Tenho um filho dessa idade, lembra?” - “Puxa, tinha me esquecido, como é que ele vai? Ainda está com a mãe?” E ele: - “Deixa pra lá, que eu não acabei de contar a piada”.
O avô abriu os braços, solícito: - “O que aconteceu, meu amor?”. Fabinho, mais tranqüilo, procurou explicar o que havia visto, com a clareza que seus seis anos permitiam.
Seu Antonio, que conhecia bem a filha e sempre acreditava no neto, prontificou-se a procurar pistas sobre o inaudito acontecimento, sem antes deixar de se certificar se o neto não precisava mesmo ir ao banheiro.
Inspecionaram a orla, sem constatar nada de anormal.
O salva-vidas, preocupado com o atraso do colega que deveria rendê-lo, não tirava os olhos de Cleuza, com medo de perdê-la de vista uma vez mais. Incrível, ela possuía o dom de desaparecer sempre que ele se livrava do trabalho.
E agora, esse velho “pentelho”, com uma história absurda. Imagine, acreditar num menino idiota, que mal saíra dos cueiros! - “Qual é, vovô? Pensa que não conheço meu trabalho? Em praia minha, ninguém se afoga.” E abriu um sorriso na direção em que deveria estar a mulata que, como sempre, havia “misteriosamente” sumido, uma vez mais. - “Maldito velho!”, resmungou.
Mas avô e neto não ouviram a imprecação, pois já haviam se afastado na direção de Marina que, por sua vez, não foi menos grosseira: - “Já vi que hoje não é meu dia!”.
Seu Antonio olhou para a filha e para Rodolfo, com olhar de entendido, o que a deixou ainda mais possessa: - “Tá legal, vocês conseguiram, vamos embora”, falou grosseiramente. Mudando de tom, dirigiu-se aos amigos: - “Espero vocês hoje à noite, hein?”.
A família acordou mais tarde do que de hábito, cansada pela longa e barulhenta noite que, regada a uísque e gargalhadas, registrara sua marca em cada um.
Marina, ainda sonolenta, tentava se livrar da eterna enxaqueca, escondendo-se atrás de imensos óculos escuros. Tarde da noite, quando ela acabara de deitar, exausta, Fabinho acordara chorando, assustado com um terrível pesadelo, no qual Iemanjá lhe aparecera morta e desfigurada.
Seu Antonio, por sua vez, vagara pela casa durante boa parte da madrugada. – “Deita de uma vez, pai, parece um fantasma”. – “Vou deitar de uma vez, sim, filha, e não me acorde de manhã, que eu não vou à praia”.
Aliviada porque o pai ia ficar em casa, Marina anteviu uma manhã mais agradável com os amigos e sugeriu: “Fabinho, você também não quer ficar descansando hoje, enquanto eu vou um pouquinho à praia?”.
“Não, mãe, eu quero ir pra ver se a Iemanjá volta linda igual ontem, assim eu esqueço do sonho”. – “Então voa, que eu já estou indo”.
O sol estava incandescente e as pessoas um tanto agitadas. Antes mesmo de localizar a turma, mãe e filho notaram um agrupamento de pessoas à beira d’água.
Aproximaram-se ansiosos, com desagradável premonição.
O salva-vidas gesticulava, pedindo que as pessoas se afastassem. Fabinho enveredou por entre as pernas dos freqüentadores, olhos arregalados de horror ao notar o inconfundível arco-íris a embrulhar o corpo disforme.
- “Manhê, é a Iemanjá. Ela engordou, mas é ela. Eu avisei, eu falei pra esse moço.”
- “Tira esse menino daqui, dona. Criança não pode ver essas coisas, que fica chocada e desanda a dizer besteiras.”
Rodolfo veio em sua direção e enlaçou-a: - “Vou levá-la para casa, você está muito nervosa”. Fabinho disparou na frente: - “Eu quero contar pro meu avô. Só ele me entende”.
Mas seu Antonio já não podia ouví-lo. Fora se encontrar com Iemanjá.
- “Eu mereço!”, choramingava Marina, apoiando-se no solícito acompanhante. – “Você cuida de tudo pra mim, querido?”. – “Desculpa, minha flor, mas é melhor você ligar p’ro seu marido, que hoje é dia de eu ir buscar meu filho. Você entende, não é?

Um comentário:

Anônimo disse...

O layout está bem caracteristico com sua personalidade Suzete, irei te ajudar com parte da experiência que ainda ronda por mim eheheh.. abraços.