quarta-feira, 6 de outubro de 2010

MULHER E FILOSOFIA – Uma Visão Transdisciplinar

Introdução - A História e a Filosofia, substantivos femininos, são questões masculinas. Escritas por homens, para homens, a respeito de homens e de suas realizações, onde a mulher é vista como “fator secundário da sua espécie”, em um mundo androcentrado.
Gilles Deleuze afirma que “A história da filosofia deve não redizer o que disse um filósofo, mas dizer o que ele subentendia necessariamente, o que ele não disse e, no entanto, estava presente no que ele disse”. Qual o sentido de se “subentender necessariamente” proposições filosóficas que excluem ou tornam indigna a participação da mulher na história? Ora, se quando tratam das mulheres, os filósofos sempre mantiveram um monólogo, expresso ou não, deixando um legado de chauvinismo misógino, isto já não está entendido e subentendido?
O fato é que o ser humano é dicotomizado, o feminino sendo tratado como descartável (ao menos) da vida pública e intelectual, nada mais que uma condição imposta pelos deuses (e seus auto-intitulados representantes na Terra) à perpetuação da espécie, razão pela qual seu destino sempre esteve adstrito ao âmbito do privado, mas esse discurso não conseguiu apagar a presença de algumas heroínas que lograram deixar marcas de expressão como seres humanos pensantes, nos interstícios do silêncio que lhes foi patriarcalmente imposto.
Os tempos da Deusa -A história do ser humano como ser social não se resume aos registros escritos. Desde a pré-história, sua vocação gregária é inconteste e está documentada numa forma de comunicação simbólica, que poderia retratar a realidade isenta do dualismo forçado que se consubstancia em informações técnicas, porém, desvirtuadas pela linguagem excludente.
A filosofia nasceu entre os séculos VII e VIII a.C. como contra-ponto da razão às puras crenças mitológicas. Não obstante a sobreposição do saber epistêmico ao mítico, o arquétipo da deusa sobreviveu ao tempo, convivendo ainda durante séculos com o pensamento filosófico, até ser banido com a instauração definitiva do patriarcado.A argamassa social, sem o amálgama do feminino, desequilibrou os relacionamentos e degradou a participação da mulher na vida pública e intelectual. Aos filósofos coube a justificação da nova ordem, cujos pressupostos éticos foram consolidados com o triunfo do Cristianismo.
Se por um lado a imagem de Maria como a Virgem Santa traz alguns aspectos reverenciados na Deusa cultuada nas sociedades pré-históricas - generosidade, amor maternal, compaixão e paz –, por outro, dela se distancia por expressar uma visão de mundo hierarquizada, onde a mulher gera e o homem gere, sendo a submissão a característica feminina mais reforçada culturalmente.
Assim, a História e a própria Ciência acabam por distorcer evidências, como as “cenas de intimidade feminina” encontradas em escavações em Creta, interpretada como “tagarelice” feminina dos “escândalos da sociedade”. Somente com o avanço da arqueologia, os(as) estudiosos(as) passaram a reavaliar esses valiosos achados, atribuindo-lhes uma significação mais isenta dos preconceitos culturais que levaram a História a cometer erros crassos.
Não bastasse o legado tormentoso da Queda sobre a condição humana, o homem tomou a seu cargo o controle do Saber e a função de algoz de todas as “Evas Pecadoras”, impondo-lhes o recolhimento a um “papel feminino” pré-determinado, que tem como corolário a manutenção na ignorância. A clausura e o silêncio funcionaram como um castigo adicional.
O declínio da deusa - Dessacralizada a Deusa, o homem passa a ser o eixo em torno do qual orbitam astros desprovidos de luz própria: as mulheres. Ao princípio matrilinear da alteridade, sobrepõe-se o ensimesmamento patriarcal, que não aceita o diferente, o outro, principalmente quando esse outro é feminino. Mas “esta espécie ainda envergonhada” não se deixa abater e, deusa ou humana, vai deixando as marcas de sua passagem por esta Terra que é de todos. Assim, as qualidades femininas foram resguardadas no tempo, pois são imprescindíveis ao equilíbrio da humanidade.
Mulheres Filósofas – Na antiguidade, cabe lembrar inicialmente Hipácia “astrônoma, matemática, física, filósofa e historiadora, última diretora da Biblioteca de Alexandria, assassinada cruelmente pelos fanáticos do Patriarca Cirilo, pouco antes do incêndio que destruiu uma das maiores realizações da humanidade. Hipácia foi relegada ao esquecimento, seu nome banido dos registros, sua obra destruída. Cirilo foi canonizado”(Beto Hoisel).
Antes dela, raras foram as mulheres que se destacaram, portanto, não há como deixar de admirar a coragem de Safo de Lesbos, poetisa proclamada por Platão como “a décima musa”; de Aspásia, a cortesã nascida em 470 a.C, admirada por Sócrates por sua “rara sabedoria política” ou das mulheres que influenciaram Pitágoras, como a sacerdotisa Temistocléia e a filósofa Teano, a quem alguns atribuem ao menos parte de seus escritos e teoremas.
Ao acender (ou apagar) das luzes do Medievo, nova força patriarcal se (des)une ao cristianismo: O Islã. Filósofos como Avicena (980-1037) e Averrois (1126-1198), contribuíram para o desenvolvimento da filosofia tomista, solidificando a teologia cristã. Assim, se a Idade Média não foi um período de trevas, o foi com certeza para as mulheres, obscurecidas durante os séculos que se seguiram ao assassinato de Hipácia. Algumas, iluminadas, conseguiram distinguir-se por entre as trevas, principalmente quando conectadas ao misticismo cristão, entre elas a monja-filósofa Hilda de Whitby (614 a 680 d.C.); a mística alemã Hildegarda de Bingen (1098-1179), filósofa mística Beatrice de Nazareth (1200-1268) e Santa Gertrude (1256-1302), que brilharam por si e em si mesmas.
Nenhuma, porém, conseguiu, como Teresa de Jesus (1515-1582), canonizada em 1622, receber o título de Doutora da Igreja, provavelmente por haver fortalecido em seus escritos os dogmas do catolicismo, então ameaçado pela Reforma. Um último nome relevante (laico) a ser destacado já ao “apagar” da Idade Média é o da filósofa Cristina de Pisan, comparada por seus contemporâneos a Cícero e Catão, por sua eloquência e sabedoria.
A Idade moderna não é mais pródiga em revelar nomes femininos, exceção feita a duas pensadoras pré-feministas, Olympe de Gouges (1745/93), e Mary Wollstonecraft (1759/97).
Jornalista e dramaturga, democrata por convicção, Olympe se distinguiu por ser anti-escravagista e por sua luta pela igualdade de direitos, tendo contraposto à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (setembro de 1791) e escrito um (novo) Contrato Social propondo relações igualitárias entre os cônjuges. Sua decapitação pelo “Terror”, cabe como uma “luva metafórica”: a mulher, no androcentrismo, é corpo, não cabeça. Qual na celebrada democracia grega, dois milênios antes, os ideais que inspiraram a Revolução Francesa e a Declaração de Direitos do Homem, não se aplicavam aos excluídos de sempre (mulheres e escravos).
Mary Wollstonecraft entendia o feminismo como luta pelos direitos de toda a humanidade e não se deixou anular pela formação num lar sob a violência de um pai perturbado, transformando o sofrimento em alavanca para desenvolver as polêmicas “Reivindicações” que a levaram à cena dos debates políticos no contexto das primeiras Declarações de Direitos.
No século XIX, o surgimento de novas correntes filosófico-literárias, científicas e políticas, desfocou os interesses e a mulher, minoria solitária, se desdobrou. Ativistas em várias frentes, suas armas foram vestir-se de homens e usar pseudônimos masculinos, como George Sand e Flora Tristan. Filósofas, escritoras, abolicionistas, educadoras, sufragistas, socialistas militantes, não receberam o reconhecimento dispensado a seus pares, como aconteceu, entre outras, com a escritora Nísia Floresta (1810-1885), precursora do feminismo no Brasil.
A mulher na filosofia contemporânea - Na primeira metade do século XX várias mulheres conseguiram ser, pela primeira vez na História, respeitadas pelo mérito de seu próprio trabalho e ideias, independente do rumo que imprimiram a suas vidas privadas, como Margareth Mead (1901/78), Hannah Arendt (1906/75) Simone de Beauvoir (1908/86); Simone Weil (1909/43), Íris Murdoch (1919/99), Riane Eisler e Betty Williams, ganhadora do Nobel da Paz de 1976.
A antropóloga-cultural Margareth Mead não se limitou a teorizar, mas saiu a campo para estudar sociedades atuais cuja cultura é considerada “primitiva” e foi membro da “escola da cultura e personalidade” cujo expoente máximo foi Ruth Benedict (1887-1948). Hannah Arendt é outra demonstração do ecletismo feminino. Seus estudos sobre o totalitarismo revelam o perigo da condescendência como forma de banalização do mal, induzindo a uma ética de “não-violência vigilante e crítica”, a ser adotada por governantes e governados.
Já Simone Weil, asceta e mística, acreditava na meditação e na sabedoria dos ensinamentos contidos nos Livros Sagrados, como fonte de transcendência e, no jejum, como arma potente contra a injustiça. Iris Murdoch, também se insere no contexto filosófico do pós- guerra, ao unir seu misticismo à filosofia existencialista, tornando-se polêmica pela abordagem de temas sexuais.
Na última metade do século vinte, novas evidências científicas deslocaram o enfoque filosófico sobre a realidade bio-psico-física, social e cosmológica, ao abalar “verdades” milenarmente assentadas. É nesse hiato androcêntrico-filosófico, visto por alguns como a “morte da filosofia”, que a mulher se insere, conferindo-lhe novas perspectivas, na profusão de livros, teses e artigos de estudiosas(os) que passa a ser divulgada, numa reconquista feminina da liberdade de expressão. Infelizmente, este trabalho não permite um justo levantamento nominal.
Resta lembrar que a busca feminina por um mundo melhor, hoje transpõe inclusive barreiras religiosas dentro de seu próprio habitat, insurgindo-se contra orientações da Igreja, ao repensar o mundo atenta aos clamores ecológico-feministas e consequentemente social-filosóficos. Refiro-me à participação nos debates da monja e teóloga brasileira Ivone Gebara, cuja importante contribuição filosófica chega a incluir questões sobre a sexualidade, vista como uma questão política em sua surpreendente “teologia ecofeminista”.
Considerações Finais - A mulher já conseguiu atravessar o “umbral sagrado” que a separava do espaço a que sempre fez jus, mas não nos iludamos, o patriarcado, assim como a história ou a própria filosofia, como advogam vozes antifeministas, não acabou. A estrada é longa e pedregosa, em defesa do bom senso da humanidade.
Minha tese é a de que as mulheres não devem mais “redizer” o que disseram os filósofos a seu respeito, nem tentar mais subentendê-los, pois, ao fazê-lo, reforçam as considerações pejorativas que eles lhes dirigiram. Significa dizer que, aplicado o entendimento à Filosofia Feminista, sob o prisma da hermenêutica jurídica, a última ratio de uma solução justa à questão das mulheres é a própria realidade (a ultrajante condição feminina). Se a filosofia, como lembra Olgária Matos, sempre teve (ou deveria ter tido) a atribuição de consolar a alma sofredora, cabe-nos agora resgatar sua vocação curativa, fazendo cicatrizar as chagas decorrentes do esquecimento a que ela própria nos relegou, violentando nosso corpo e nossa alma.
Necessário se faz ressignificar eventos e redimensionar a História, enfrentando a fria razão patriarcal em suas bases lineares e utilizando todas as perspectivas que o saber humano nos oferece, sejam científicas, fenomenológicas, intuitivas, sincronísticas ou mitológicas. Acredito que a Filosofia precisa ser retomada e também redimensionada, reassumir sua vocação metafísica, num “repensar o pensamento” filosófico propondo novas respostas às indagações universais, fundada na relevância da experiência humana – feminina e masculina –, pois o feminismo já exorcizou a opressão.
Parece-me que, ao monopólio androcêntrico e à violência-simbólica de um dualismo ancorado no poder, disfarçado de saber filosófico, dever-se-ia contrapor agora uma filosofia inclusiva e eticamente fundada que, levando em consideração a experiência humana como um todo, poderia, quiçá, encontrar caminhos para enfrentar a mais profunda indagação da alma humana: Quem Sou Eu?.

(Resumo de Ensaio escrito por Suzete Carvalho, in Mulher, Sociedade e Direitos Humanos, org. Patrícia T.M.Bertolin e Ana Cláudia P.T. Andreucci, SP:Rideel, 2010, pág. 804/833)

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