segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O trabalho juvenil como panaceia: uma desconstrução*

Considerações Introdutórias - Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) esteja a comemorar duas décadas, suas disposições não foram suficientes sequer para contornar o escabroso problema da exploração da mão-de-obra infantil, agravada, exatamente nesse período, pelo aumento do contingente de crianças e adolescentes nas ruas, à mercê de indivíduos inescrupulosos (às vezes os próprios pais) que os forçam a oferecer quinquilharias e/ou drogas nos semáforos, quando não lhes impingem a mendicância.
O trabalho infantil no Brasil - A crise econômica do final do século XIX reforçou o antigo argumento do trabalho como panacéia para as questões sociais, oferecendo à sociedade brasileira mais uma “desculpa” para a exploração: a da preocupação com a delinquência infanto-juvenil. Deixava-se perpassar, àqueles a quem o trabalho infantil aproveitava (os detentores do poder econômico e político), a percepção de que a criança era uma mão-de-obra mais passível de ser intimidada e mais barata.
A chegada dos imigrantes para substituir os escravos, ao não acarretar também distinções entre adultos e crianças, igualmente incorporados ao contingente de mão-de-obra, contribuiu para a manutenção do statu quo ante, somente amenizado com a implementação de normas legais de âmbito nacional e internacional, já que a questão do trabalho infantil transcende fronteiras.
O rótulo “trabalho leve”, utilizado para designar qualquer trabalho desempenhado pelas “forças marginais” – crianças, mulheres e idosos – não significa um trabalho que exija pouco esforço ou não seja nocivo à saúde, mas sim aquele que é desvalorizado, considerado fácil, porque pode ser realizado por qualquer pessoa e, por esse motivo, “autoriza” uma baixa remuneração. Assim, essa conotação de “leveza” não é dada ao trabalho infantil (ou feminino) por suas próprias características, “mas pela posição que seus realizadores ocupam na hierarquia familiar”.
A partir da C.F./88, começaram a se organizar movimentos pleiteando uma legislação especial que tratasse crianças e adolescentes abandonados e/ou infratores como cidadãos, tendo sido editado, em julho/1990, o ECA, consagrando a doutrina da proteção integral. Decorridos 20 anos, verifica-se que essa “prioridade absoluta”, não foi objeto de conscientização social e se desvaneceu em meio a mazelas de toda ordem, que se refletem no afastamento do jovem das atividades escolares e no recrudescimento da miséria – consequentemente da ignorância e da violência –, a vitimizar principalmente nossa população infanto-juvenil.
A elevação da faixa etária para permissão do trabalho infantil não tem o condão de conferir cidadania à população infantil. Ao contrário, essa proteção fragmentada, pode ter e teve como corolário, a falta de um investimento maciço em políticas públicas educacionais, a par do aumento de menores abandonados e explorados como fonte de renda por “protetores” inautênticos, ilegítimos e/ou criminosos e a inserção dos jovens em novos e macabros “mercados de trabalho”: o das drogas e da prostituição infantil.
A partir de 15/12/98, foi elevada a idade mínima para ingresso no mercado de trabalho, passando a ser proibido qualquer trabalho a menor de 16 anos, a não ser na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. As demais vedações foram mantidas.
As concepções de criança/menor no Estado Novo (criança merece proteção e cuidado; menor merece repressão; criança é rica e tem que estudar, menor é pobre e tem que trabalhar; criança será o futuro do país, menor não terá futuro) ainda pairam sobre a cabeça de grande parte dos donos do poder político-econômico e/ou midiático.
Alegações de que o trabalho aprendiz é importante para a sociabilidade da criança, sua autoestima ou para prepará-la para a vida profissional futura carecem de fundamento, pois esse trabalho não raro a afasta da escola ou é a razão do seu desinteresse pelas atividades escolares, que são as únicas capazes de garantir-lhe qualificação futura para o mercado de trabalho.
A proteção ao trabalho infantil no Brasil de hoje - Apesar da legislação proibir, dados do I.B.G.E. indicavam em 2008 a existência de 4,5 milhões de trabalhadores entre 5 e 17 anos, sem falar no setor informal, em trabalhos sazonais e intermitentes e no âmbito doméstico, ou mesmo nas piores formas de trabalho infantil. Não obstante, em termos de garantir o acesso das crianças à escola, houve significativos avanços nessas quase duas décadas, os quais, entretanto, não afastam os persistentes problemas e desigualdades.
Costuma-se identificar a pobreza como o principal determinante do trabalho infantil, mas há outros aspectos, como a composição familiar (quando há vários irmãos, alguns costumam trabalhar para que outros estudem). ou nas famílias chefiadas por mulheres, o que certamente denuncia seu grau de vulnerabilidade. Também, quanto mais cedo os pais começaram a trabalhar, mais inclinados estarão em colocar seus filhos para trabalhar.
Enfim, apesar dos programas voltados a tirar as crianças brasileiras das ruas como PETI e o Bolsa Escola, é necessário que haja à disposição desses jovens uma escola pública de qualidade, que os mobilize e lhes ofereça uma formação capaz de lhes garantir uma ocupação futura digna, e que eles não se sintam “perdendo tempo” em uma escola precária e defasada, quando poderiam estar contribuindo para o sustento da família – e trabalhando para poder adquirir os bens de consumo veiculados pela mídia, em sua maior parte inacessíveis.
Questão a ser enfrentada pelas políticas públicas é a de que a escola profissionalizante é destinada aos jovens de camadas pobres, enquanto aos filhos das famílias abastadas é oferecida uma escola particular, moderna e atraente, garantidora de qualificação futura, o que alimenta a reprodução de uma estrutura social injusta, dificilmente superável. Deve-se levar também em conta, dentre outros aspectos, o fato de que o retardamento do ingresso no mercado de trabalho é um importante fator para o aumento de empregos para os adultos.
Conclusões - A crença indiscriminada no trabalho como valor dignificante em si mesmo, tem contribuído para perenizar a distinção social entre as classes privilegiadas – a quem cabe o trabalho intelectual – e as consideradas aptas somente para as atividades braçais, pelo simples fato de serem desfavorecidas economicamente. O trabalho infantil jamais será erradicado se não houver, a par de uma legislação e fiscalização realmente eficazes, uma conscientização social de que essa distinção também se exterioriza nas diferenças conceituais entre menor e criança, caracterizando uma discriminação a priori que se reflete, entre outras, nas “(...)propostas diferenciadas como a profissionalização e a repressão, para os primeiros, e os serviços essenciais como educação e saúde, para as crianças.”

* Síntese de artigo escrito por Patrícia T.M. Bertolin e Suzete Carvalho, in ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ESTUDOS EM COMEMORAÇÃO AOS 20 ANOS, org. Andréa B. Caraciola, Ana Cláudia P.T. Andreucci e Aline Silva Freitas, SP:LTr, pág. 264/277.

Nenhum comentário: