sábado, 27 de outubro de 2012

Homenagem da Escola de Governo à fundadora Maria Victoria Benevides


Escola de Governo





Estamos saudando hoje Maria Victoria Benevides, através da republicação deste texto da Professora Suzete Carvalho, originalmente escrito para a Revista Thot da Associação Palas Athena, nº 66 de agosto de 1997. Trata-se de um documento relator do 1º Congresso de Educação em Direitos Humanos e Cidadania, impressionante em sua atualidade. A Escola de Governo já contava naquele momento, seis anos de existência, e agora, completando a maioridade, quanto trabalho ainda por ser feito...

Equipe da Escola de Governo

PAINEL



Educação em direitos humanos e cidadania

A Constituição de 1988 declarou formalmente que o Brasil é um Estado de Direito, assegurando o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a igualdade e a justiça como valores supremos, dentre outros, de uma sociedade sem preconceitos, fundada em princípios como a cidadania e a dignidade humana. Teve ainda o mérito de ser a primeira Carta a incluir entre os direitos e garantias fundamentais os sociais, que nas Constituições anteriores estavam subordinados ao título referente à ordem econômica e social.

Vê-se que, do ponto de vista formal, nossa lei maior revela uma visão avançada no que se refere à questão dos direitos humanos. Antecipou-se até mesmo à Conferência Mundial de Viena, de 1993, que consolidou sua indivisibilidade e universalidade, consagradas pela Declaração Universal de 1948, pioneira na inclusão dos direitos sociais ao lado das liberdades individuais. Assim como esta surgiu como reação à barbárie da II Guerra Mundial, a Constituição Brasileira de 1988 nasceu da necessidade de aplacar os clamores da nação, após duas décadas de anti-democracia, caracterizada pela censura, legislação de exceção, tortura, ausência de cidadania e de liberdade de expressão, para dizer o mínimo de uma ditadura que se impôs pela força militar.

Todavia, como toda reação emocional, a nova legislação - embora avançada - não se baseou numa ética interna, dando assim margem a conchavos políticos, que por sua linguagem vaga e ambígua criaram obstáculos à aplicação de muitos dos direitos conquistados. A cidadania ressurgiu mutilada e o processo educativo permaneceu desmotivador, fragmentado, apenas informativo.

Por essas e outras razões, diz-se que nossos direitos humanos são mais de discurso do que de recursos. Como conseqüência, vemos o ressurgimento do individualismo exacerbado, que se traduz na carência de solidariedade, opondo um consumismo desenfreado ao recrudescimento da miséria; a banalização da violência em todos os níveis; a falta de crítica característica da ausência de formação ética, contrastando com o crescente inconformismo dos excluídos de sempre; as constantes denúncias de violação de direitos humanos por policiais mal preparados e mal pagos; e a manipulação da realidade por uma rnídia que se coloca (salvo exceções) a serviço da manutenção do status quo.

Mas, nesse labirinto de contradições, o persistente trabalho ético de homens e mulheres conscientes e corajosos mantém acesa a luz da esperança, possibilitando encontros como o I Congresso de Educação em Direitos Humanos e Cidadania, realizado nos dias 5 a 7 de maio último, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pela Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, sob a coordenação geral de sua presidente, a educadora Margarida Bulhões Pedreira Genevois.

A Rede é uma organização não-governamental, suprapartidária e sem finalidades lucrativas, que surgiu em 1995, tendo como princípios a educação em direitos humanos e o compromisso permanente com a cidadania para todos, com um papel de "irradiação", no dizer do Secretário de Direitos Humanos, José Gregori. Este, ao falar na sessão de instalação do congresso - da qual participaram também o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e o Secretário da Justiça de São Paulo, Belizário dos Santos Jr. -, declarou que o objetivo do encontro era "contagiar cada vez mais pessoas para a conscientização dos direitos humanos".

Para a vice-presidente da Rede, a cientista política Maria Victória Benevides, educar em direitos humanos é formar mentalidades; trata-se de um processo dinâmico e constante, que inclui a educação para a paz, a solidariedade (nossa carência principal), a tolerância (virtude essencialmente ativa) e a ética, como bases de uma nova cultura de respeito à dignidade humana.

POR UMA CULTURA DE DIREITOS DA PESSOA - O congresso contou com a participação de educadores de várias áreas, que enunciaram suas preocupações, fruto de intensa vivência no plano nacional e internacional, fascinando a platéia pela inteligência e cultura postas a serviço dos direitos humanos. Na impossibilidade de citar todos, registramos algumas das personalidades de renome, como Leticia Olguín, da Universidade da Costa Rica;Luiz Perez Aguirre, do Serviço de Paz e Justiça do Uruguai; Antonio Manuel dos Santos, da UNESP; Alfredo Bosi, da USP;Aldaíza Sposati, da PUC/SP; Vera Candau, da PUC/I\J. A coordenação dos painéis foi feita por representantes da Rede, como Terezinha Fram e Júlio Lerner, que dispensam apresentação. Houve ainda depoimentos corajosos e encorajadores, de representantes de movimentos, núcleos e projetos de vários estados brasileiros, que enriqueceram o congresso, relatando suas experiências.

Mereceu destaque o importante trabalho desenvolvido em países da América Latina, como Costa Rica, Peru, Chile, México, Uruguai e Brasil, que lutam pela construção de uma cultura de direitos humanos que derrube as arcaicas estruturas .que, a partir do inconsciente individual e coletivo, ainda impregnam o nosso dia-a-dia, pois somos herdeiros de tradições fatalistas, como a ibérica, e discrirninatórias, como a greco-romana.

A idéia de globalização - um dos grandes desafios para a educação em direitos humanos – foi detectada como uma das maiores farsas do nosso tempo, já que o mundo globalizado existe há séculos, sob a forma de mercantilismo, imperialismo e colonialismo, bem como a todo-poderosa Economia de Mercado, à qual se submetem governantes e governados, que torna os ricos cada vez mais ricos e transforma os pobres em miseráveis; eis a antiga deusa, cujo culto renasce das cinzas, como a Fênix, a subverter os valores das sociedades em crise ética.'

Trocadilhos como a transformação do Welfare State - o Estado de Bem-estar Social, que se tornou alvo do neoliberalismo - em Fare Well State - adeus ao bem-estar social, ou "estado de mal-estar social", na inteligente tradução de uma estudante -, imprimiram sutileza crítica ao encontro. Como afirmou Dalmo Dallari, descontraindo o auditório: "Sou otimista, mas não sou cego".

A defesa de uma universidade pública e gratuita, compromissada com a sociedade, que tenha como característica básica a formação transdisciplinar e realista, fundamentada num universo ético, foi consensualmente apresentada como uma utopia possível, sem a qual não há como remover a aura de abstração dos direitos humanos, concretizando-os no cotidiano.

A BUSCA DO ETHOS PERDIDO - Para o atual reitor da USP, Flávio Fava de Morais, a universidade é o "ancoradouro dos que ousam pensar". Nela, o estudante deve viver a "aventura da inteligência", partindo do "exercício da meditação reflexiva" e praticando (não proclamando, pois hoje não há mais lugar para pedantismo e arrogância) "os conceitos da cidadania". Para tanto, ela tem que vencer mitos como segregação e meritocracia, equilibrando ações afirmativas e multiculturalismo, com base num pluralismo integrador dos direitos humanos que só acontece na educação.

Assim se reafirma a idéia democrática de que os seres humanos se educam em comunhão, porque educação é acima de tudo um ato de amor, ou não passará de mero treinamento, como ensinava Paulo Freire, do alto de sua paixão radical pelos condenados da Terra, os excluídos de sempre. É nesse trabalho que deve ser, antes de mais nada estabelecida com clareza a distinção entre o respeito às diferenças, que pertence ao campo dos valores, e a manutenção das desigualdades, que são perversas porque se inserem no campo das discriminações delituosas. A indignação diante do preconceito, que em nosso país se revela principalmente contra a tríade "mulheres, negros e pobres", deve ser manifestada na vida privada como na política, não se permitindo quaisquer formas de discriminação - ocultas ou explícitas -, num trabalho perseverante de resgate da dignidade humana.

Não se pode conviver com as contradições de uma sociedade que descarta pobres e velhos, oferecendo-lhes um salário mínimo que, por seu valor, é um atentado aos direitos humanos, revelando um "preconceito legalizado"; que se esconde, com medo de suas próprias crianças, relegadas ao abandono; que denigre a imagem de seus próprios funcionários, aceitando ingenuamente a tese útil à corrupção que grassa nos mais altos escalões, de que retirar os direitos dos servidores públicos é a panacéia moralizante e estabilizadora de toda a economia.

É preciso denunciar a violência simbólica, que faz parecer naturais formas de discriminação como o desprezo, a indiferença e a humilhação, e modos de exploração habilmente camuflados pela retirada de direitos paradigmáticos de categorias ditas "privilegiadas". Esse argumento autoritário inviabiliza a detecção dos verdadeiros privilégios, mantidos por uma legislação basicamente de exceção. Esta perpetua a vigência de medidas provi sórias, jamais discutidas e votadas pelo poder competente, e por isso transformadas em instrumentos fragmentadores de direitos e bens públicos, o que se procura compensar por meio de tributos ditos transitórios, mas que também se eternizam.

Precisamos nos libertar do duplo discurso e descruzar os braços, exercendo nossa cidadania de forma responsável, crítica mas participativa, pois a possibilidade de mudança numa sociedade em crise se dá no reencontro do ethos perdido, que se manifesta pela conscientização e aplicação dos verdadeiros valores, cujo habitat inicial somos nós mesmos, e que tem o condão de se ampliar em progressão geométrica, a partir de nossas mais corriqueiras ações e relacionamentos familiares, até alcançar as mais complexas estruturas sócio-econômicas e políticas.

São essas as noções consensuais mínimas sobre o complexo trabalho de educação a ser enfrentado. Elas são extraídas da experiência e sabedoria de homens e mulheres dedicados ao resgate da liberdade, igualdade e dignidade humanas, que harmonizaram e integraram, como as contas de um colar, todos os participantes do congresso, do humilde e atento estudante ao conferencista internacionalmente conhecido, e que ficam como mensagem da "esperança como virtude revolucionária" que nos legou Paulo Freire.



SUZETE CARVALHO é pós-graduada pela Universidade de São Paulo (Filosofia do Direito e Direito do Trabalho), conferencista e professora da Associação Palas Athena.



Texto retirado da Edição 66 – 1997 da Revista Thot publicada pela Associação Palas Athena



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