segunda-feira, 2 de março de 2009

Complexo de culpa

PARTE I *

Desde a mais tenra idade somos bombardeados com normas familiares, religiosas e sociais – o mais das vezes inibidoras -, que vamos internalizando enquanto construímos a nossa personalidade, sem que nos demos conta de que os valores e sentimentos, que acreditamos nossos, nos foram impostos culturalmente.
Dessa forma, o “espontâneo” sentimento de culpa é mais acentuado em determinados grupos, variando no tempo e espaço, o que lhe retira, a priori, o caráter imanente que algumas tradições lhe impingiram.
O fato é que as religiões ocidentais, a par de pregarem amor e caridade, contribuindo para a paz e a elevação moral da humanidade, são, paradoxalmente, responsáveis pela maior parte das inibições de ordem moral, que nos levam a um permanente estado de guerra contra todos, inclusive nós próprios.
Mas o fenômeno da culpa não se restringe à influência religiosa, já que os tentáculos da culpa se entrelaçam em verdadeira trama bio-psico-sócio-cultural, pois embora a vivência se dê na consciência do sujeito, sua gênese tem causas externas e acaba repercutindo socialmente já que estamos sempre em relação uns com os outros.
Daí decorre que a culpa, como tantos outros sentimentos perversos, efervesce num círculo vicioso, que se auto-alimenta, agravado pela rigidez do superego pessoal ou coletivo e pelos mecanismos psíquicos de defesa. Assim, de uma forma ou de outra, ninguém escapa de algum sentimento de culpa, a menos que seja portador de uma personalidade psicopática.
Dentro de limites normais e desde que assentada sobre a realidade, a culpa é necessária para possibilitar o convívio social, já que tem o condão de despertar esse bicho-da-consciência que é o remorso e, de alguma forma, impulsiona a caridade. Nesse sentido, poder-se-ia falar em culpa normal ou natural e culpa anormal ou exacerbada, embora (já que nada é isto “ou” aquilo, mas isto “e” aquilo), haja uma zona cinzenta entre essas formas.
Os sentimentos de culpa saudável são proporcionais e adequados ao ato praticado, levando ao remorso e ao arrependimento, que servem para evitar sua repetição. Quando, porém, ultrapassam os limites da razoabilidade, tornando-se fonte de angústias, a culpa e o remorso podem ser devastadores.
Trata-se do chamado complexo de culpa, problema tormentoso porque decorrente de uma questão culturalmente arraigada. Esse processo de absorção individual dos condicionamentos culturais, (imprinting) é como uma tatuagem indelével, da qual procuramos nos livrar esfregando inutilmente a pele: maior o esforço, maior a irritação decorrente.
A questão da culpa é, portanto, uma questão muito complexa. Ao estudá-la, a psicanálise envereda pelas discrepâncias entre o Super Eu e o Eu; o direito enfoca a relação crime/castigo, ou seja, a transgressão culpável da norma legal; e a filosofia reflete sobre a gênese e as consequencias da culpabilidade humana.
Cabe à psicanálise trazer uma das mais importantes contribuições para a elucidação dessa e tantas outras questões sobre nossas emoções e sentimentos que se revelam nas fobias, neuroses e todas as paixões doentias que abraçamos ou nos abraçam, em decorrência de nossas limitações intrínsecas ou culturais.
São limitações geradoras de ansiedade e angústia existenciais que, agravadas pelo medo das conseqüências, se revelam numa sintomatologia dolorosa do corpo e da alma e nas dificuldades de interação com nossos semelhantes, cujas dores não conseguimos reconhecer, pois sequer as reconhecemos em nós mesmos.
Inconscientemente, na ânsia de sermos compreendidos e aceitos, nós nos revelamos aos outros por palavras, atos (geralmente falhos) e em atitudes posturais e gestuais. É a voz da consciência (superego) que se revela, implorando punição. A transgressão, clamando por retaliação.
Essa consciência culposa ou “angústia de consciência”, pode ainda trazer consigo transtornos funcionais como perda ou excesso de apetite, insônia, pesadelos e taquicardia, paradoxalmente causas e sintomatologia da depressão que em geral acompanha o sentimento de culpa.
É a “necessidade de adoecer” ou “consciência neurótica”, que nos atormenta de forma desproporcional ao ato praticado, ou mesmo sem haver motivos plausíveis de culpabilidade. Como diziam nossos avós, “quando não as temos, as fazemos”. Sentimo-nos culpados por recônditos desejos insatisfeitos, ou mesmo por nossas meras intenções e, então, nossa consciência moral se encarrega de nos punir exemplarmente.
As sutilezas mentais, muitas vezes, fazem com que acrescentemos, sem nos darmos conta, uma pitada de tempero a essa “infelicidade interior contínua”, quando “armamos” inconscientemente situações culposas, tornando-as tragicômicas. Judith Viorst, no livro Perdas Necessárias, descreve poeticamente a saga dos amantes imaginários Ellie e Marwin, assomados pela culpa inconsciente, que tomo a liberdade de transcrever parcialmente:

“Ellie e Marwin
Têm se encontrado secretamente duas vezes por semana
Durante os últimos seis meses
Mas não consumaram sua paixão
Porque
Embora ambos concordem
Que a felicidade conjugal
Não só é pouco realista como também
Irrelevante,
Ela começou a sofrer de enxaquecas e
Ele começou a ter pontadas agudas
No peito, e
Ela ficou com impetigem e
Ele teve conjuntivite.
(...)
Ellie e Marwin
Desejam fazer amor durante a tarde
Num motel
Mas até agora só tomaram uma grande quantidade
De café
Porque
Ele está convencido de que seu telefone tem escuta e
Ela está convencida de que um homem com jaqueta de couro a está
seguindo e
Ele diz, e se o motel se incendiar
Ela diz, e se ela falar alto em sonho e
Ela acha que o marido está agindo com hostilidade suspeita e
Ele acha que a mulher está agindo com bondade suspeita e
Ele está sempre ferindo o rosto com a lâmina de fio duplo e
Ela está sempre prendendo a mão na porta do carro assim
Embora ambos concordem
Que o sentimento de culpa não é só neurótico mas também
Obsoleto
Concordaram também em
Desistir
Dos encontros secretos”.

*O artigo se baseia em uma palestra proferida em um curso sobre as Dores da Alma.

A Parte II será postada na próxima semana.




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