terça-feira, 10 de março de 2009

Complexo de Culpa

PARTE II

A modernidade acrescentou um bom número de novos motivos para perpetuar nosso sentimento antológico de culpa. A revolução sem precedentes nos costumes, em que pese haver trazido uma renovação nos valores, não nos preparou para enfrentar as questões práticas delas decorrentes.
Assim é que a emancipação feminina, se por um lado trouxe novas oportunidades à mulher, como a realização profissional, por outro ampliou seu espectro de culpas. Neste caso, por ver diminuída a sua disponibilidade para cuidar dos interesses da família e, principalmente, por não poder acompanhar de perto o desenvolvimento dos filhos, sente-se entre a cruz e a espada.
Afastados do cenário doméstico grande parte do dia e, às vezes, até à noite, marido e mulher buscam compensar a culpa detonada pelas longas ausências do lar, tornando-se permissivos com os filhos o que lhes acarreta nova dose de culpabilidade.
Bem a propósito, a Dra. Ana Aurélia Di Bella Napolitano, especializada em Medicina Familiar, propõe uma ação educacional no sentido de substituir a malfadada “culpa”, pela expressão “responsabilidade dividida”, desvinculando-a definitivamente de sua dolorosa acepção cultural.
Essa proposta vai ao encontro da teoria da complexidade, que propugna por uma mudança no modelo mental racional que adotamos, o qual, não levando em conta a rede na qual estamos todos inseridos, determina nossos condicionamentos e expressões por leis causais implacáveis.
As mulheres, principalmente, assoberbadas pelo ônus cultural que lhes impôs responsabilidades exclusivas na criação e educação dos filhos e nos cuidados com o lar, enfrentam o grande dilema de conciliar a carreira com o papel de mãe e esposa, o que não lhes permite desfrutar sem culpa as eventuais gratificações profissionais.
Em contrapartida, os homens se sentem angustiados diante da necessidade de se adaptar às novas realidades cotidianas, para as quais não foram preparados emocionalmente. Assim, o marido culpa-se por não ser mais o grande provedor; culpa a esposa por dedicar-se à carreira, em detrimento do lar; enfim, culpa-se por culpá-la.
O fato é que homens e mulheres não foram educados para a “responsabilidade dividida” a que se refere a Dra. Ana Aurélia. Não compreenderam, ambos, assim como a sociedade pós-moderna em geral, que numa sociedade em mudança, todos temos que nos adaptar às novas realidades, despindo-nos dos modelos pré-moldados de comportamento.
A crise decorrente deveria ser encarada como uma oportunidade de aprimoramento social, de aprendermos a nos compreender mutuamente e de nos descondicionarmos dos rígidos papéis sócio-familiares tradicionalmente impostos a homens e mulheres, que a todos limita e infelicita.
Mas não há como nos desvencilharmos desse ônus cultural, enquanto não aprendermos a superar a questão da culpa original, mantida por um modelo de pensamento linear, patriarcal, fragmentador e excludente.
Não basta repensar o modelo, há que colocar em prática os novos paradigmas que subjazem à crise da modernidade e um dos mais importantes é a recolocação da culpa em seu devido lugar. Há que retirar o status de virtualidade permanente que a civilização lhe ofereceu como cadeira cativa.
A culpa está assentada num trono arquetípico, do qual nos dirige tiranicamente, apossando-se de nossa impotente personalidade. Dentre seus escudeiros mais impiedosos, destaca-se o patriarcalismo que, impondo papéis rígidos e diferenciados entre homens e mulheres, a todos subjuga e desnorteia.
Assim, repensar a culpa implica, a priori, repensar nosso modelo mental, questionando as fórmulas prontas que nos têm sido impostas há séculos e que não se adequam à complexidade da realidade pós-moderna. Implica também recolocá-la em seus devidos parâmetros, permitindo que ocupe apenas o estrito lugar de reguladora moral em situações concretas de culpabilidade, erros que devem ser reconhecidos, até para que não se repitam.
Repensar a culpa, portanto, não significa reprimir o sentimento, pois assim o estaríamos reforçando, mas, ao contrário, procurar manter um diálogo franco e realista conosco mesmos, sobre seu cabimento diante das circunstâncias que a originaram.
Estabelecida a procedência do sentimento de culpa, a saída ética e racional é procurar recompor a situação com perseverança e determinação, porém, na medida de nossas possibilidades, sem nos perdermos em atitudes neuróticas ou pretensões onipotentes.
Essas são as bases de um arrependimento honesto, que busca uma reparação eficaz e coerente com a realidade, seja no pedido sincero de perdão ou no reconhecimento público da culpabilidade quando outra pessoa houver sido responsabilizada por nossos erros, seja na satisfação material como suporte da perda ou dano que possamos haver causado.
É importante que saibamos que nem todas as pessoas estão preparadas para perdoar, especialmente após enfrentarem alguma perda importante. Exigir o perdão ou pensar que dele não se é merecedor, são maneiras tão despropositadas de enfrentar a culpa, quanto projetá-la ou negar-se a repará-la.
Perdoar é des/culpar, eximir da culpa, e somente a própria consciência tem esse poder. Portanto, é no auto-perdão que se encontra a efetiva possibilidade de cura.
Mas saber desculpar-se perante o outro é uma forma de demonstrar arrependimento, necessária para aliviar o sofrimento de quem se sentiu injustiçado e, consequentemente, é uma forma de tranquilizar nossa própria consciência culpada e prepará-la para o auto-perdão e a cura.
O processo, muitas vezes, é lento e exige ajuda especializada, mas embora difícil, não é irremediável. Solucionar conflitos internos é uma questão de discernimento, boa vontade e perseverança e não condiz com vitimização e comodismo.
Mesmo se considerarmos que a culpa é um problema arquetípico, profundamente enraizado em nossa cultura, nossa potencialidade para a transcendência e a libertação também o é.
A impermanência é a lei da vida e, portanto, queiramos ou não, acabaremos por nos libertar da culpa, seja ela real ou imaginária. Nossa escolha se resume ao processo, que pode ser rápido ou lento, com maior ou menor dose de sofrimento, pois quanto mais nos dispusermos a mudar, mais rápida e menos dolorosamente se dará a mudança.
Se, ao contrário, nos entregarmos ao processo de vitimização, estaremos prolongando as dores de nossa alma, num martírio inglório e desnecessário que acabará por desqualificar uma parte preciosa dessa incrível experiência que é viver.

Ensaios da palestrante sobre temas correlatos às “Dores da Alma”:
Submissão – in THOT nº 72, Ed.Palas Athena, p. 69/75;
Violência e Cidadania: Um Diálogo Impossível – in THOT nº 76, p.37/42;
Ressentimento – in THOT nº 77, p. 44/52.

Leia a primeira parte: Parte I

2 comentários:

Anônimo disse...

Acho interessante organizar um sarau em alguma bliblioteca do ipiranga ou do jardim da saúde . podemos combinar pelo meu e-mail dinizjunior71@yahoo.com.br

um abraço

Suzete Carvalho disse...

Olá Diniz
Também acho. Por coincidência ontem participei de um sarau lítero-musical que realizamos no Clube Atlético Ypiranga. Não o avisei porque era um evento restrito aos sócios. Do encontro extraimos um "poema coletivo" que eu organizei e estou postando hoje mesmo aqui no blog.
Você tem contato específico com algum(a) bibliotecário(a) aqui da região que nos facilite o acesso para um sarau? Tem como divulgar?
Vou (tentar) concatenar m/idéias/correspondência/agenda e lhe mando um e.mail logo.
Abraço