segunda-feira, 13 de abril de 2009

A TRÍADE

Considerações sobre o FGTS

Em brilhante Conferência realizada em 30 de março último, no auditório do Centro de Convenções Rebouças, por ocasião do I Congresso Brasileiro de Direito Individual do Trabalho, patrocinado pela Editora LTr, o renomado Professor Octávio Bueno Magano retomou a tese publicada recentemente no Jornal “Folha de São Paulo” que, em síntese, se traduz na proposta de abolição – com retorno ao setor privado, da arquibilionária receita estatal respectiva – do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço.
Para impulsionar seu irrepreensível raciocínio lógico, o erudito conferencista tomou como ponto de partida a idéia de que o ser humano tem irresistível atração pela tríade, tendo apresentado, para demonstrá-la, exemplos clássicos retirados dos mais diversos campos da cultura ocidental – da Trindade Divina às proposições silogísticas -, até chegar à tripartite representação – de trabalhadores, empregados e Governo -, junto ao Conselho Curador do FGTS.
Parece-me, data-venia, de clareza meridiana que num mundo condicionado pela tridimensionalidade, em que o homem não consegue transcender a visão compartimentada em largura, comprimento e altura, torna-se explicável sua atração pela tríade, que, aliás, vem ampliar a ultrapassada concepção maniqueísta, fixada em “inconciliáveis” opostos como “bem e mal”, “certo e errado”, “verdadeiro ou falso”, aos quais poderíamos acrescentar também “empregado e empregador” como partícipes exclusivos das relações jurídico-trabalhistas, em presumida igualdade de condições, como pretendem os defensores da flexibilização irrestrita no Direito do Trabalho.
Se a visão tridimensionalista já é insuficiente para dirimir as novas questões postas diuturnamente na dinâmica da sociedade e do direito, gerando algumas tríades monstruosas, antevejo um perigoso retrocesso ao bidimensionalismo, onde se situa o mundo das sombras (ou meras aparências) ou o das formigas, incansáveis trabalhadoras que só se apercebem da largura e do comprimento, sem vislumbrar a dimensão da altura, à qual o homo sapiens já conseguiu se elevar.
Digressões filosóficas à parte, a reformulação do Direito do Trabalho é, sem dúvida, uma das questões jurídicas mais prementes neste país paradoxal, onde a riqueza se centraliza nas mãos de um número ínfimo de privilegiados, em detrimento de uma imensa população de “sobreviventes” formados não apenas pelos desempregados ou subempragados na economia informal, mas basicamente por dezenas de milhões de trabalhadores que, embora empregados – e, portanto, sob a égide da legislação trabalhista -, são mal remunerados e mal representados, mesmo porque o sindicalismo do país é reconhecidamente fruto do corporativismo fascista, mero instrumento, ainda, salvo raras e honrosas exceções, da hegemonia econômica e estatal.
Hoje, fala-se em flexibilização (tendência atual na Europa) como se fora uma panacéia que viria solucionar todos os problemas jurídico-trabalhistas do Brasil, sem se atentar para o fato de que a raiz desses problemas não está tanto numa legislação protetiva – ainda que um tanto caótica – dos trabalhadores, mas nas condições quase sub-humanas de vida, num país que se aproxima de uma indianização (só em São Paulo as estatísticas revelam um contingente de quase três milhões de pessoas literalmente “nas ruas”, em estado de absoluta miséria) e que pretende, um tanto oniricamente, fazer parte do Primeiro Mundo.
Refiro-me, aqui, ao risco de nos apegarmos a uma “nova” concepção liberalista – herança perigosa da “era Collor”, cujas raízes doentes insistem em se fixar em nosso solo fértil – e, em nome de uma modernidade tão utópica quanto o foram os ideais franceses da famosa tríade liberté, égalité, fraternité -, acabarmos por destruir os poucos direitos trabalhistas (tão longe de equilibrar as relações capital-trabalho!), lenta e dolorosamente conquistados.
É ocaso do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – “propriedade do trabalhador e um dos elementos de proteção social”, conforme citação do Professor Wagner Balera, também palestrista no referido evento da LTr -, instituto cujo nascimento como regime de “opção” à estabilidade foi um grande engodo engendrado pelo Governo Revolucionário em 1966, ora elevado a direito dos trabalhadores (não mais como um regime de falsa opção) pela Constituição de 1988, em seu artigo 7º, inciso III. Sua extinção não se justifica pela má administração dos vultosos recursos auferidos pelo Estado, pois esse raciocínio poderia levar-nos a teratológica inversão de valores. Ineficiente não é o instituto, é a instituição. Por que, então, não repensá-la, atendendo ao anseio popular de uma nova “Ética na Política”?
Por outro lado, se a função primordial do Fundo é de cunho social e seus recursos não são propriedade do trabalhador, devendo ser aplicados primacialmente em programas de habitação popular, infra-estrutura e assistência social, porque revertê-los ao setor privado?
Enfim, ainda que se substituísse a possibilidade de levantamento dos depósitos do Fundo, na hipótese de dispensa arbitrária, por uma indenização, não seria temerário frustrar a expectativa do empregado em vias de se aposentar, de receber o que considera “seu depósito” do FGTS, já que a conta é vinculada e até impenhorável?
Voltando, por final, à idéia de tríade, o ilustre advogado Júlio César do Prado Leite, componente da Mesa que discutiu a “Flexibilização no Direito do Trabalho” no mencionado Congresso, lembrou ao público as três verdades fundamentais da cristandade: “fé, esperança e caridade”, dizendo que “desta última já perdemos o sentido”. Restam, portanto, somente a fé e a esperança, e é desta que ainda vive o trabalhador.

São Paulo, 2 de abril de 1993.

*Publicado pela Editora LTr, no Suplemento Trabalhista 055/93.
**Indicado como Referência Bibliográfica no Curso de Direito do Trabalho II, da Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus.



2 comentários:

Anônimo disse...

Conheço este artigo, que, aliás, está mais atual do que nunca. Acompanhei de perto suas terríveis consequências. No meio acadêmico, as "autoridades" não podem ser questionadas, afinal...
Ele é apenas um dos inúmeros motivos pelos quais a admiro tanto. Já dizia minha avó: "quem fala a verdade, não merece castigo".
Hoje, depois dos 40, sinto-me cada vez mais parecida com você.
Beijos e muitas saudades.
"Patinha" (Patricia Bertolin)

Suzete Carvalho disse...

Obrigada, Patinha, a admiração é recíproca. O artigo continua atual porque, infelizmente, os neoliberalistas fizeram escola e nossa luta pela manutenção dos direitos trabalhistas - arduamente conquistados - continua a mesma de há vinte anos. Quanto às "terríveis consequencias" da publicação do artigo, qualquer dia escrevo uma crônica contando os fatos de então aos leitores. Você era tão jovem e já deixava antever a brilhante carreira que faria no mundo jurídico. Hoje você também é autoridade, doutora, mas tenho a certeza de que não se deixou conspurcar pela arrogância do academicismo. Também sinto saudade de você. Beijos.